(aula)
O Ovo da Serpente (IV)
11 de Novembro
2024
Na aula passada pensámos o texto "Serenidade" (ou "Gelassenheit", em alemão) de Heidegger, uma palestra proferida em 1955 em homenagem ao compositor alemão Conradin Kreutzer. A primeira impressão foi de surpresa, pela ressonância do discurso e a afinidade de certas palavras que ecoam o trabalho de alguns de nós.
Em conjunto com uma passagem de A Origem da Obra de Arte (1950), pensámos a relação do “desaparecimento” e de uma “passagem aniquiladora” com a criação. O artista, o compositor, o criador, dissociam-se das suas identidades pessoais abrindo em si um espaço vazio - um espaço que permite uma travessia - ser atravessados e trespassar. Suspender o eu anterior que obstrui essa passagem possibilita um trespasse (passagem para outrem) no processo de criação. Permanece o corpo que se cria na vez do corpo que criou.
“o artista permanece, face à obra, algo indiferente, quase como uma passagem que se destrói a si mesma no criar, uma passagem para o passar-a-ser da obra."[1]
“Quanto maior é um mestre mais completamente a sua pessoa desaparece por detrás da obra."[2]
Ao longo do texto Heidegger procura como pode a humanidade responder à era tecnológica num mundo pós-guerra marcado pelo rápido avanço da tecnologia, pela crescente industrialização e pela iminência do aparecimento da energia atómica. A grande ameaça parece ser a perda do pensamento meditativo - um pensamento de busca e reflexão profunda. A transição para um pensamento unidimensional surge como consequência da lógica de infinitização capitalista (que não é próprio da técnica) - nunca é suficiente o que se produziu, o que se explorou, o que se extraiu, o que se ganhou… Este sistema obriga a uma constante fuga para a frente, numa lógica de produção até à exaustão. Esta infinitização que gera sobre si mesma promove a perda do enraizamento (de onde viemos e para onde vamos?).
Heidegger propõe uma resposta individual para um novo enraizamento - a serenidade (do alemão lassen - deixar ser, trespassar, passar-se…). Recuperando o paralelismo com o texto A Origem da Obra de Arte, a serenidade não promove uma indiferença, mas antes uma premissa com plena aceitação. Vem baralhar a passividade e a atividade, apontando para uma espécie de passividade ativa. Relaciona-se com a espera, a esperança e uma insistência fruto de um esforço e prática consciente - “um pensamento determinado e ininterrupto”[3].
Por fim, somos deixados a contemplar a possibilidade de outros solos para enraizamento.
[1] Martin Heidegger - A Origem da Obra de Arte (1950) em Caminhos de Floresta (2022). Tradução de Irene Borges-Duarte e Filipa Pedroso. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p.36
[2] Martin Heidegger - Serenidade (1955). Tradução de Maria Madalena Andrade e Olga Santos. Lisboa: Instituto Piaget, 2000, p.10.
[3] Ibid., p.26.
Representações do Louco (The Fool) em diferentes baralhos de tarot.