01 maio, 2025

(aula) Da noite da possibilidade ao dia da presença (II) 16 dezembro 2024

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Da noite da possibilidade ao dia da presença (II)

16 de Dezembro

2024

Para fechar as aulas livres de 2024, concluímos a leitura e conversa em torno do texto "A Literatura e o Direito à Morte" (1948), de Maurice Blanchot.

Se na aula passada nos focámos na ambiguidade da literatura, nesta aula contemplámos a relação com a morte que a literatura traz ao ser humano e a possibilidade que essa mesma relação traz à sua vida. Vimos, em continuação da leitura do texto, que a literatura é a obra da morte no mundo, situando-se na periferia do real e, por isso, revelando o todo do mundo a partir do sua própria particularidade. Ela trabalha a partir do imaginário e, ao mesmo tempo, da realidade da linguagem para transformar o ser humano, sendo esse o fazer da cultura. Neste seu trabalho ela revela o seu poder e o seu sentido: um escritor, quando escreve, escreve porque toma atenção ao trabalho da morte no mundo e, nesse seu acto, a literatura e a obra guardam no seu âmago uma capacidade de metamorfose e de alteração àqueles que com elas se confrontam.

É este o trabalho da morte no mundo: a iminência da alteração; e a literatura, surgindo sempre em ligação a esse trabalho — bem como a arte no seu geral —, toma como princípio essa mesma potência para tornar a compreensão do ser realizável.

















Papiro de Herculano, carbonizado pela erupção do Monte Vesúvio no ano de 79.


(aula) Da noite da possibilidade ao dia da presença (I) 9 dezembro 2024

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Da noite da possibilidade ao dia da presença (I)

9 de Dezembro

2024

Como modo de continuar o pensamento acerca da representação e da morte, que iniciámos a partir do texto "Hegel, a morte e o sacrifício" (1955) de Georges Bataille, seguimos a conversa desta aula para outro texto, também relacionado com o pensamento de Hegel: "A Literatura e o Direito à Morte" (1948), de Maurice Blanchot.

Em leitura do texto de Blanchot, colocou-se em diálogo a questão da literatura partindo da sua ambiguidade, no que toca à negação que ela faz do mundo e no desejo que ela tem de apresentar o ente que ausentou, e da sua relação com a morte, fazendo desaparecer o ente, nesse seu processo de representação, para com isso trazer o seu ser e o seu sentido ao mundo. Vimos que a ambiguidade da literatura se sustenta nestas duas vertentes sempre presentes em si mesma: o movimento de negação e a preocupação com a realidade das coisas; e que, através desta ambiguidade, ela trabalha no mundo e é produto da consciência, que, por sua vez, se dá em relação à morte, procurando sempre a noite que vem antes do dia da presença, e assim confrontando-se com a sua incapacidade de ser algo que não o dia, isto é, a necessidade de ver, de saber, de pensar, de representar.

A morte age através da literatura e da linguagem para trazer ao mundo o sentido, transformando aquilo que se ausentou, ou seja, aquilo que ela mesma negou, num outro, que é a obra, que surge desta sua preocupação.





















"A Literatura e o Direito à Morte" de Maurice Blanchot. Edição da Sr Teste Edições (2020). Tradução da Sara Belo.


23 março, 2025

(aula) Para além do medo (III) 2 dezembro 2024

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Para além do medo (III)

2 de Dezembro

2024

Em seguimento da aula anterior, continuámos a leitura do texto "Hegel, a morte e o sacrifício" (1955), de Georges Bataille, aprofundando, neste segundo momento, o pensamento do Hegel e de Bataille em torno do sacrifício.

Partindo do que falámos anteriormente, do ser humano contemplar o negativo, isto é, aquilo que não é, e com isso ele ser capaz de descobrir a potência do espírito em si mesmo e do seu trabalho no mundo, vimos que há algo no pensamento da morte que carrega em si um potencial de revelar a verdade humana. No entanto, se é só com a morte que essa verdade é revelada, como mostra Bataille ao pensar sobre as palavras de Hegel, chegamos a um paradoxo existencial que nos diz que é preciso morrer para nos confrontarmos com essa revelação da vida humana. Ora, sendo isto impossível de acontecer, esta experiência, que é, de algum modo, procurada pelo homem na experiência com a natureza, só consegue ser experimentada através da representação, isto é, através da encenação de uma morte, da criação de um artifício — como o caso do teatro — que permita ao ser humano confrontar-se com a realidade da morte em vida.

É, então, este jogo da representação, da capacidade de sentir a experiência de um outro como íntima, que a vida espiritual do ser humano se revela. E é assim que a imagem se torna representável, isto é, exteriorizada pelo homem — que, como vimos, é esse interior atravessado por imagens — no mundo. A sua relação com uma morte fictícia, com a representação de uma morte, é aquilo que faz o ser humano confrontar-se com o negativo na sua vida e é nesta relação que a representação e a linguagem são construídas.





















Perseus Confronting Phineus with the Head of Medusa (c. 1705-1710) de Sebastiano Ricci.

(aula) Para além do medo (II) 25 novembro 2024

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Para além do medo (II)

25 de Novembro

2024

Nesta aula, fizemos uma leitura e conversa em torno do texto "Hegel, a morte e o sacrifício" (1955), de Georges Bataille, onde reflectimos sobre a imaginação, a morte e a criação artística.

Começámos por olhar para o ser humano e para a sua interioridade, ou para a interioridade que ele próprio é no contexto da natureza, o que lhe permite imaginar e ser atravessado por imagens, e aprofundámos esta questão ao pensar na sua relação íntima com a morte através do medo.

Partindo do pensamento de Hegel, vimos como o trabalho que o homem faz na natureza é um trabalho de negação — ao se separar da continuidade natural e ao se reconhecer como um indivíduo que se nomeia e que nomeia outros — e que essa negação, essa negatividade própria do homem, é aquilo que lhe permite criar, sendo ela construída em torno do vazio interior que ele é.

Pensámos, também, nesta relação que o homem tem com a morte, com o medo e com a criação, vendo nessa relação uma causa para o seu ser espiritual, e reconhecendo aqui um isolamento para com a natureza que lhe permite pensar e trabalhar no mundo, isto é, transformar a natureza através do seu próprio entendimento.

Assim vimos que a relação do ser humano com a morte faz o seu ser e permite-lhe criar.
























Figura de um quadrado negro como modo de representar o infinito no primeiro volume de Utriusque cosmi maioris scilicet et minoris metaphysica (1617), de Robert Fludd.

14 novembro, 2024

(aula) Para além do medo (I) 18 novembro 2024

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Para além do medo (I)

18 de Novembro

2024

Analisamos algumas questões essenciais do texto de Ernst Jünger "O Passo da Floresta" (1951), com foco nos capítulos 10-15, algumas passagens iniciais e o posfácio escrito pela Maria Filomena Molder. 

Analisámos o sentido da expressão que dá nome ao livro, «passo», constatando que é um termo que requer um desenhar pelo presente, no aqui-agora, e «floresta» como lugar de libertação. 

Também foi levantada a questão "Será que é possível reduzir o medo?", uma questão central em todo o texto e que reflete sobre a história humana, com foco no medo instaurado pela guerra.

Não sendo possível aniquilar o medo, pois é matéria constitutiva do ser humano, Jünger apresenta como hipótese 3 formas de lidar com o medo maior: a Arte, a Filosofia e a Teologia. 

A arte ensina-nos que o medo pode ser reencarnado, que pode ser catarse, sem ferir ninguém. Esta dimensão teatral, pelo seu aspeto ficcional é muito importante.


A edição mais recente de "O Passo da Floresta" é da BCF editores (2021), traduzido por Maria Filomena Molder.



























"O Passo da Floresta" de Ernst Jünger. Edição da BCF Editores (2021). Tradução de Maria Filomena Molder.

(aula) O Ovo da Serpente (IV) 11 novembro 2024

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O Ovo da Serpente (IV)

11 de Novembro

2024

Na aula passada pensámos o texto "Serenidade" (ou "Gelassenheit", em alemão) de Heidegger, uma palestra proferida em 1955 em homenagem ao compositor alemão Conradin Kreutzer. A primeira impressão foi de surpresa, pela ressonância do discurso e a afinidade de certas palavras que ecoam o trabalho de alguns de nós.

Em conjunto com uma passagem de A Origem da Obra de Arte (1950), pensámos a relação do “desaparecimento” e de uma “passagem aniquiladora” com a criação. O artista, o compositor, o criador, dissociam-se das suas identidades pessoais abrindo em si um espaço vazio - um espaço que permite uma travessia - ser atravessados e trespassar. Suspender o eu anterior que obstrui essa passagem possibilita um trespasse (passagem para outrem) no processo de criação. Permanece o corpo que se cria na vez do corpo que criou.

“o artista permanece, face à obra, algo indiferente, quase como uma passagem que se destrói a si mesma no criar, uma passagem para o passar-a-ser da obra."[1]

“Quanto maior é um mestre mais completamente a sua pessoa desaparece por detrás da obra."[2]

Ao longo do texto Heidegger procura como pode a humanidade responder à era tecnológica num mundo pós-guerra marcado pelo rápido avanço da tecnologia, pela crescente industrialização e pela iminência do aparecimento da energia atómica. A grande ameaça parece ser a perda do pensamento meditativo - um pensamento de busca e reflexão profunda. A transição para um pensamento unidimensional surge como consequência da lógica de infinitização capitalista (que não é próprio da técnica) - nunca é suficiente o que se produziu, o que se explorou, o que se extraiu, o que se ganhou… Este sistema obriga a uma constante fuga para a frente, numa lógica de produção até à exaustão. Esta infinitização que gera sobre si mesma promove a perda do enraizamento (de onde viemos e para onde vamos?).

Heidegger propõe uma resposta individual para um novo enraizamento - a serenidade (do alemão lassen - deixar ser, trespassar, passar-se…). Recuperando o paralelismo com o texto A Origem da Obra de Arte, a serenidade não promove uma indiferença, mas antes uma premissa com plena aceitação. Vem baralhar a passividade e a atividade, apontando para uma espécie de passividade ativa. Relaciona-se com a espera, a esperança e uma insistência fruto de um esforço e prática consciente - “um pensamento determinado e ininterrupto”[3].

Por fim, somos deixados a contemplar a possibilidade de outros solos para enraizamento.

[1] Martin Heidegger - A Origem da Obra de Arte (1950) em Caminhos de Floresta (2022). Tradução de Irene Borges-Duarte e Filipa Pedroso. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p.36 [2] Martin Heidegger - Serenidade (1955). Tradução de Maria Madalena Andrade e Olga Santos. Lisboa: Instituto Piaget, 2000, p.10. [3] Ibid., p.26.










Representações do Louco (The Fool) em diferentes baralhos de tarot.

05 novembro, 2024

(aula) O Ovo da Serpente (III) 4 novembro 2024

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O Ovo da Serpente (III)

4 de Novembro

2024

Nesta aula pensámos o texto “Post-scriptum sobre as sociedades de controlo” (1990) de Gilles Deleuze, procurando relacioná-lo com o filme o “Ovo da Serpente” (1977) que temos pensado ao longo destas últimas aulas. Neste texto, Deleuze referencia três tipos históricos de sociedade - a sociedade de soberania, que antecede Napoleão, e é marcada pelo poder centralizado nos monarcas com controlo direto sobre os seus súbditos; a sociedade disciplinar que se desenvolveu entre os séculos XVIII e XIX/XX; e a sociedade de controlo que surge após a Segunda Guerra Mundial. Deleuze propõe que estamos numa fase de transição entre a sociedade disciplinar e a de controlo.
Nas sociedades disciplinares, o poder organiza-se em torno de instituições fechadas com leis próprias e vigilância sistemática, onde o indivíduo é moldado pelo confinamento e pelo controlo no espaço físico e temporal. Exemplos disso incluem os espaços da família, escola, igreja, fábrica, hospital, sindicato, exército e prisão. Estas instituições possuem limites bem definidos e operam impondo disciplina através de espaços delimitados e um sistema linear e previsível.
Por outro lado, nas sociedades de controlo, o poder deixa de estar confinado a instituições específicas, passando antes a ser disseminado por toda a vida social de maneira contínua e muitas vezes invisível. A lógica de controlo adapta-se às circunstâncias, sendo flexível e modulável, regulando o comportamento sem imposições diretas. A identidade do indivíduo, anteriormente moldada de forma rígida pelas instituições, torna-se fragmentada, dando origem aos “dividuais” - partes divididas do sujeito, susceptíveis a serem condicionadas a perfis digitais, analisadas por sistemas de dados, registos financeiros e créditos. Este controlo opera por meio de redes abertas, tecnologias digitais e sistemas de informação, que permitem um monitoramento permanente e invisível.
Esta nova forma de poder manifesta-se no trabalho, na educação, na economia… no novo capitalismo. E torna-se evidente no modo de funcionamento das empresas, do marketing, e da publicidade - “gasoso” e até “almejados”. Enquanto as fábricas das sociedades disciplinares eram lugares hierarquizados e localizados, as corporações multinacionais das sociedades de controlo operam como redes descentralizadas e globais, flexíveis e impregnantes. Os nossos desejos, ações e vontades passam a ser moldados de maneira quase impercetível. 








Criança Geopolítica Observando o Nascimento do Homem Novo, de Salvador Dalí (1943).
Notas iniciais sobre a pintura: “Paraquedas, paranascimento, proteção, cúpula, placenta,
Catolicismo, ovo, distorção terrena, elipse biológica. Geografia muda a sua pele em germinação histórica”.