12 dezembro, 2022

(aula) A violência sublime (1)

   (aula)

A violência sublime (1)

29 de Novembro

2022




















coragem de poeta (1, 2017) e still de die Rosse (2018), Teresa Projecto

O que é que significa dizermos que algo é sublime? O que é o sublime? E o que é que o sublime ainda pode oferecer ao pensamento, hoje, e sob que ângulos?

Na última aula, ensaiámos uma aproximação à categoria filosófica e artística do sublime.


Tomámos como ponto de partida um testemunho de Teresa Projecto em torno do seu processo de investigação artística, que motivou a escolha desta categoria na sua investigação de Doutoramento em Belas-Artes: a interrupção (ou transformação) da produção artística, o questionamento sobre a dimensão estética da experiência, o diálogo estabelecido com as imagens e o limiar sacrificial anunciado por algumas dessas imagens:


«Um dia, deu-me na cabeça que queria ver um coração. Eu sempre tive um impulso muito forte para ver as coisas por dentro. A Sara ofereceu-me uma vez um poema com um excerto da Clarice Lispector, que dizia que quem quer ver o ovo está com fome. Eu sempre tive fome (e acho que o sublime dá uma certa fome…). Então, fui ao talho, descobri que só havia corações por encomenda, que eram muito baratos, encomendei um coração de porco — que dizem ser o mais parecido com o humano —, lá fui levantá-lo no dia combinado, e levei-o para casa. E aquilo aterrorizou-me. Escrevi sobre isso brevemente num texto, fiquei cheia de medo. Estava sozinha em casa, pus o coração a correr no frigorífico, e ficava em pânico só de imaginar que estava ali. Montei um pequeno set de fotografia, como costumo fazer, preparei a máquina, e lá tirei o coração, coloquei-o no palco pequenino da fotografia. Fotografei-o e filmei-o. E daí surgiu uma das imagens que me é mais querida até hoje. (…) Porque há algo nesta imagem que carrega esse terror que eu senti nesse dia com o coração (literalmente) nas mãos. Porque esta imagem representa para mim um limite e uma espécie de aviso para mim mesma. Eu vejo esta imagem e penso: Bem, chegaste ao ponto de desejar ver por dentro de um coração, um bocado como o Fausto no início do filme do Sokurov, estás à beira do que podes efectivamente ver, não podes escavar muito mais… E estás à beira do que é fazível, talvez moralmente possível, também. Apesar de tudo, eu não matei o porco: só queria uma fotografia daquela abertura…»


Com este mote, percorremos sucintamente uma paisagem disciplinar, na qual a palavra e o conceito do sublime se foram transformando ao longo da tradição ocidental: desde o pergaminho grego Parisinus 2036, no qual consta o Peri Hypsous (ou Do Sublime, de autor desconhecido, datado do séc. I); acompanhando a acentuação do seu valor teológico na vida religiosa do Cristianismo; passando pelo seu renascimento laico no efeverscente interesse dos séculos XVI e XVII pela tratadística literária (com as traduções do Peri Hypsous feitas por Francesco Robortello para latim, em 1554, e de Nicolas Boileau para francês, em 1674), que tornou possível a sua passagem definitiva para a filosofia, nos contextos alemão e anglo-saxónico do século XVIII (com Alexander G. Baumgarten, em 1750; Uma Investigação Filosófica em torno das Ideias de Belo e de Sublime, de Edmund Burke, em 1757; e, finalmente, com a Crítica da Faculdade do Juízo, de Immanuel Kant, em 1790). Seguimos ainda o fio que fez ressurgir, já no século XX, a categoria do sublime nas suas leituras modernas, a partir da publicação de Barnett Newman The Sublime Is Now! (1948), posteriormente comentada por Jean-François Lyotard em vários momentos dos seus textos (dos quais destacamos O Inumano, 1988), e subsequentemente criticado por Philippe Lacoue-Labarthe, também em diversos momentos do seu pensamento (Où en étions-nous?, 1982; La poésie comme expérience, 1988; La verité sublime, 1988).

Desta paisagem percorrida com alguma brevidade, retirámos as seguintes hipóteses:


1) Que o sublime pode ser pensado como força informe, porque pode manifestar-se em qualquer forma e dar forma sem restrições a qualquer corpo ou circunstância;


2) Que o sublime implica a experiência de uma violência, ou uma violência exercida sobre a experiência — pela sua força disruptiva, que dissolve temporariamente o par sujeito-objecto.




Deixamos um link de acesso ao fac simile do pergaminho P 2036 no qual consta a versão mais antiga conhecida do Peri Hypsous: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b8470138s/f16.item


E ainda um link para aceder à tradução portuguesa da autoria de Marta Várzeas, em acesso livre no catálogo da da Imprensa da Universidade de Coimbra: https://ucdigitalis.uc.pt/pombalina/item/54537


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