27 dezembro, 2020

(aula) Mal de identidade (V)

(aula)

Mal de identidade (V)

22 de Dezembro
2020

Parece que tocámos de novo no núcleo duro — no último reduto — no derradeiro obstáculo — do mal. Sobretudo quando lemos esta passagem de Kant, que escreveu em jeito de confissão: 

«Quero, por amor à humanidade, admitir que a maior parte das nossas acções sejam conformes ao dever; mas se examinarmos de mais perto o seu objecto e a sua finalidade, deparar-nos-emos em qualquer caso com o querido Eu, que acabará sempre por sobressair; é nele, e não na estrita observância do dever que muitas vezes exigiria a auto-renúncia, que se apoia o desígnio de que elas são a resultante» (Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Segunda Secção).

Quer isto dizer que o «objecto» principal (e a «finalidade») das acções humanas é — ou tem sido — o sujeito empírico (o «querido Eu»), e que este não se retira ou não renuncia a si mesmo para que aí se levante, acima de qualquer inclinação natural ou interesse particular, o conceito de Dever. Apenas este conceito, com efeito, pode determinar para Kant a acção com valor moral, porque o Dever é determinado por um puro princípio (e não por inclinações ou por necessidades individuais). O Dever, por outras palavras, está na origem da acção que tem um fim em si mesma, não se confundindo com todas as outras acções que constituem meios para alcançar finalidades que lhes são extrínsecas. 

Tudo isto parte do pressuposto de que o homemqualquer homem — na sua existência deve ser considerado como fim em si mesmo. E tudo isto conduz à proposta da «paz perpétua» realizável no «reino dos fins», quer dizer, no reino (ideal) em que todos os seres racionais se submetem «à lei segundo a qual cada um deles jamais poderá usar de si próprio ou dos outros simplesmente como meios, mas sempre simultaneamente como fins em si mesmos» (idem). 

Ora, é no âmbito da explicitação do «reino dos fins» que surge a distinção entre «preço» e «dignidade», e por isso se justificou percorrer nesta aula a Primeira e a Segunda Secção do livro citado (deixando a Terceira e última Secção para outro momento em que possamos revisitar o conceito de liberdade). Bastará convocar, para já, uma última passagem do texto de Kant para apreendermos não somente o que distingue o «preço» da «dignidade» como também a proximidade, algo inesperada, entre estes conceitos e aquilo que Bataille propõe sob os termos «homogéneo» e «heterogéneo»: 

«No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Aquilo que tem preço pode ser perfeitamente substituído por qualquer outra coisa, a título de equivalente; pelo contrário, o que está acima de qualquer preço, o que possui uma dignidade, não admite, por conseguinte, qualquer equivalente.
Aquilo que diz respeito às inclinações e às necessidades gerais dos homens tem um preço venal; aquilo que, mesmo sem pressupor uma necessidade, corresponde a um certo prazer, isto é, à satisfação que nos proporciona o puro exercício gratuito das nossas faculdades mentais, tem um preço afectivo; mas o que constitui condição necessária para que qualquer coisa venha a ser um fim em si mesma, isso não tem apenas um valor relativo, mas um valor intrínseco, ou seja, uma dignidade» (idem).

No «reino dos fins» — podemos concluir provisoriamente e propor — há uma igualdade entre os inequivalentes. Cada ser racional (Bataille diria, simplesmente: cada ser humano) vê no outro a sua própria incomensurabilidade. Os seres humanos são iguais, enquanto humanos, não porque disponham de uma medida comum entre si, mas porque todos — sem excepção — são um fim em si mesmos, quer dizer, um fim sem finalidade exterior e portanto sem termo de comparação (que permitiria a comum mensurabilidade). A igualdade humana não é portanto pensável através de qualquer valor relativo, ela não é mensurável ou quantificável: é sempre uma igualdade de princípio, uma igualdade que dispõe face a face dois incomensuráveis. 

Colectivamente, os humanos nunca puseram em prática, a não ser fugazmente, a igualdade dos incomensuráveis. Na verdade, tal face-a-face tem sido insuportável para a maioria dos humanos, pois no olhar do outro vê-se o sem-fundo da desmesura da vida. No plano propriamente político, tal desmesura tem até inspirado um horror com consequências históricas desastrosas. Foi isso que vimos confirmado num segundo eco provocado pelos conceitos de Bataille, ao lermos, brevemente, duas passagens de um texto de Jean-Joseph Goux, «Freud e a estrutura religiosa do nazismo», no qual se procura explicar o «ódio eterno» aos judeus. 

Limitamo-nos a transcrever essas duas passagens — que merecem, sem dúvida, que as retomemos em debate alargado (numa próxima aula), tanto mais porque, por um lado, elas aprofundam o teor das aulas em que visionámos Noite e Nevoeiro e um excerto de Shoah, e porque, por outro lado, exigem um esclarecimento quanto aos gesto eminentemente político de Freud ao escrever Moisés e o Monoteísmo

«O Judeu e o Ariano assemelham-se estranhamente. O Judeu só é perfeitamente o Outro, a outra raça a suprimir como incarnação temível do mal, porquanto é o mesmo. A luta contra os Judeus é para Hitler uma guerra fratricida. […] O Judeu, como estranho irmão, é necessário para alimentar o ódio metafísico, para conservar a rivalidade mortal entre os pretendentes à eleição pelo Pai. / […] Rivalidade das crianças de Deus pela eleição suprema junto do Pai Eterno: ainda que os motivos possam, diz Freud, parecer, à primeira vista, incríveis, é todavia esta inveja teológica que deve ser posta em primeiro plano para explicar o ódio contra os Judeus que emana do “inconsciente dos povos”» (pp. 60-61).

«Inveja teológica»: e se esta inveja constituísse o motivo profundo da guerra que é, desde sempre, quer dizer, miticamente, apresentada como a luta mortífera entre dois irmãos, Abel e Caim? E se os dois irmãos primordiais apenas figurassem a luta interior do mesmo que pretende eliminar o outro (de si)? Expulsar o heterogéneo (portador de uma força divina)? 

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