(aula)
Identidade e simbiose
15 de Fevereiro
2021
frutos, grãos, raízes comestíveis,
E que fui estucado com quadrúpedes e pássaros,
E que, por boas razões, me afastei do que está atrás de mim,
Mas chamo de volta qualquer coisa quando a desejo.
Walt Whitman
Nesta aula, vimos quatro vídeos com texto de Teresa Castro e realização de Bruno Castro, unidos pelo título geral de Segredos da Natureza.
→ aceder ao micro-site da Culturgest dedicado ao evento Cinema e Razão Ecológica, que aloja os vídeos
Nestes, a autora (historiadora e investigadora na área dos estudos cinematográficos), tenta escapar a uma das principais armadilhas do pensamento ocidental, a saber: aos automatismos que conduziram ao beco sem saída de uma noção de identidade como entidade pura. Tais automatismos — o facto de pensarmos com as categorias duais gregas e dialecticamente — permitiram-nos certamente pensarmos o mundo e relacionarmo-nos com ele; contudo, simultaneamente, colonizaram-no de tal modo que tipos de pensamento alternativo ou não se desenvolveram, ou ficaram esquecidos, ou foram relegados para o número das curiosidades antropológicas (pense-se nas múltiplas filosofias orientais, árabes ou no pensamento índio). Rejeitando qualquer ideia de impureza, o Ocidente sempre afirmou a identidade na oposição e na anulação da diferença. Ora, conhecemos hoje bem de mais as graves consequências históricas deste trabalho de higiene no seio da noção de identidade — tal como os sérios danos colaterais sobre a Natureza. E, contudo, a autora do guião destes vídeos tampouco aceitaria este tipo de narrativa da catástrofe, uma vez que, segundo a mesma, “é dever vital da imaginação resgatar o presente do imaginário da catástrofe”...
Nesse sentido, em vez de categorias duais e mutuamente excludentes; em vez de uma dialéctica que opõe tese e antítese, prevendo-se, no momento da síntese, a vitória de uma sobre a outra; em vez do darwinismo, filho destas categorias e dialéctica — a Historiadora e investigadora Teresa Castro propõe, por assim dizer, uma esperançosa via ao lado. Propõe que se aceite o estado turvo do pensamento tocado pelo mistério e pela incerteza — e não apenas as ideias claras e distintas que brotariam desse espaço iluminado que é uma consciência encerrada em si mesma; que a atenção caia também nos espaços intersticiais em que ninguém repara, onde crescem (como ela lhes chama) “vidas menores”, vidas ambíguas, híbridas, sem uma autonomia soberana, seres não auto-suficientes; que, enfim, seja dado lugar ao que até agora foi remetido para a margem, como monstruoso, por não se conformar com o facilmente compreensível (quer porque, em razão da escala, não é abarcável pela percepção humana; quer porque não é inteligível num quadro estritamente lógico).
Numa palavra, Teresa Castro propõe que se pense-com, neste caso com seres de outras espécies; espécies, além disso, vulgarmente consideradas marginais; concretamente, com blobs, fungos, líquenes, cogumelos, plantas ruderais…, ou seja, com seres habitualmente desprezados pela nossa atenção; como diz a autora, “parentes em que não pensamos e sobretudo com quem não estamos habituados a pensar”. (Sublinhe-se este quem — termo pelo qual a investigadora reconhece uma dignidade que geralmente é negada a seres não-humanos; sinal da arrogância de um pensamento antropocêntrico que subjaz aos discursos habituais). O que estas “vidas menores” nos têm a ensinar é no mínimo fascinante, o que as torna, nas palavras da investigadora, “companheiros exemplares”…
Fomos sensíveis a vários noemas condensados nos vídeos tais como:
1. a hipótese avançada por Lynn Margulis de que, ao contrário das metáforas guerreiras e económicas naturalizadas em parte pelas Ciências Biológicas, não foram a competição, o parasitismo e a predação o motor da evolução, mas as simbioses mutualistas (e consequentemente num certo sentido “todos somos líquenes”);
2. que a reimaginação dos padrões de existência do humano podem passar por “alianças multiespécies”, à semelhança do que acontece no seio da micorriza, onde “todos os parceiros estão vivos e os termos da sua associação não são estáveis”;
3. que as plantas ruderais, “vegetação dos comuns contaminados e subalternizados”, significativamente chamadas daninhas, invasoras, oportunistas, são afinal, e “apesar da devastação”, quem “regenera os solos danificados e cura os solos e os corpos”.
Quanto ao tema da identidade e simbiose propriamente dito, interessaram-nos sobretudo as palavras da autora a propósito da natureza compósita da identidade ao nível biológico. Ficou claramente exposto o logro da “insularidade essencialista” da noção de indivíduo e demonstrado como a identidade biológica (e porventura qualquer identidade) resulta de uma “simbiose mutualista”.
Sem dúvida, a questão da identidade tem sido uma questão de vida ou de morte para o indivíduo e para a comunidade que dela retira a sua coesão e sobrevivência. Chegou talvez o tempo de a pensar — à identidade — (e este é o grande contributo dos vídeos) como algo híbrido que é dado de fora, na simbiose com vidas de naturezas muito diferentes, constitutivamente impuras; mas também que é dada — essa identidade — a partir de dentro, de um comum íntimo e (porque não começar a assumi-lo?) também inumano. Inumano que faz da identidade não uma questão de vida ou de morte, mas uma questão de vida e de morte, como faces (incessantemente permutáveis) de uma mesma moeda... No actual contexto mundial de “precariedade e devastação”, diz a autora, é preciso lembrar, como o faz o fungo, que a podridão e a decadência continuará a ser um laboratório de vida… ou talvez, mais exactamente, diríamos nós, saindo para o ar livre, um viveiro de vida.
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