17 dezembro, 2020

(aula) Mal de identidade (IV)

 (aula)

Mal de identidade (IV)

14 de Dezembro
2020

Nesta aula, a Potira Maia retomou a leitura do seu texto Pensar a identidade brasileira e a heterogeneidade, nomeadamente a secção “A minha origem vem do outro — o heterogêneo” (pp. 3-5), que mobiliza as noções de homogeneidade e de heterogeneidade avançadas por Georges Bataille no artigo “A estrutura psicológica do fascimo” (1933). Estas noções, e o seu enquadramento no pensamento de Bataille, forneceram então a pista para um novo aprofundamento da relação entre os três motes — Mito, Mal e Arte — propostos em aulas anteriores para pensar o mal de identidade (lembramos, em particular, a possibilidade de distinguir dois modos de conceber e experienciar os mecanismos de identificação: um artístico, outro religioso).

Segundo Bataille, a homogeneidade é toda e qualquer actividade (e/ou existência) cujo fim lhe é exterior; a sua base real é a “produção” útil. Tal é a razão pela qual se pode igualmente definir a homogeneidade — no sentido estrito que lhe dá Bataille — pela comensurabilidade. Ou seja, o homogéneo pressupõe a possibilidade de troca de uma coisa por outra e requer, portanto, a existência de um terceiro elemento: a medida comum (é uma tal necessidade de medição que explica a existência do dinheiro). A noção de homogéneo analisada por Bataille refere-se assim ao estabelecimento, por um lado, de um sistema de equivalências que permite determinar o valor de cada objecto e, por outro, de um sistema de funções que determina o posto de cada sujeito na produção colectiva. 

Ora, Bataille não põe em causa a necessidade do “homogéneo”, pois deste depende a subsistência. Ele procura antes pensar que o ser humano enquanto tal é uma existência que se exprime em actividades cuja finalidade lhes é intrínseca. A tudo o que contém um “fim em si mesmo” — a começar, podemos suspeitar, pela própria existência… —, Bataille chama “heterogéneo”. Mesmo que este seu texto não detalhe as diferenças, podemos dar como exemplos de actividades heterogéneas aquelas que envolvem o sagrado, o erotismo ou a arte — actividades que não visam um outro fim que não a sua própria experiência, e por conseguinte não precisam de ser justificadas por nenhum ganho. O carácter autónomo dessas actividades releva, portanto, de um modo de ser que vale por si mesmo, atestando a qualidade irredutível, incomparável e insubstituível, porque absolutamente singular, da existência de cada ser.

(Podemos até perguntar se a heterogeneidade, assim entendida, não invalidaria a própria ideia de “finalidade”… Mas esta é uma das repercussões que indagaremos depois, tanto mais que Bataille afirma, num passo crucial da sua argumentação, o seguinte: é devido à incapacidade da sociedade homogénea encontrar em si mesma uma “razão de ser” — e portanto uma finalidade para a vida — que ela se submete a um Outro: à instância heterogénea, à instância de poder para onde cada indivíduo transfere a sua heterogeneidade intrínseca… O poder político da realeza — um dos exemplos centrais dados por Bataille — é assim compreensível enquanto instância heterogénea exteriorizada…)

A distinção entre o heterógeno e o homogéneo, que traduzem diferentes formas de valorização do ser — uma, a favor da sua própria existência, a outra, em função de uma determinada utilidade a que essa existência pode ser reduzida —, fornece a Bataille a base para discernir a estrutura do fascismo que se impunha já em 1933 (ano em que este texto é escrito). A fineza da análise de Bataille reside em reconhecer a dependência do movimento homogeneizante face ao heterogéneo (a sua inseparabilidade, portanto): a eficácia do fascismo, tão capaz de mobilizar e galvanizar as massas, deve-se ao facto de este se apresentar como uma forma soberana da heterogeneidade, combinando, na figura do líder, os dois poderes históricos da realeza: o militar e o religioso. É por Bataille reconhecer o poder religioso como mais capaz (porque mais primitivo e substancial) de produzir homogeneidade (isto é, identificação...) que o estudo deste seu texto contribui para o aprofundamento da nossa reflexão em torno do mal de identidade.

No final da aula, esboçou-se a necessidade de reconhecer a afinidade entre a estrutura fascista (tal como Bataille no-la dá a pensar) e a estrutura do capitalismo. Será o reconhecimento do fundo religioso do capitalismo, enfim, que poderá sustentar o questionamento e a desconstrução da sistemática expropriação do ser singular (do seu valor de existência intrínseco) pela sua instrumentalização ao serviço de um valor que lhe é extrínseco, o do crescimento económico, tido por absoluto (como a resposta mundial à pandemia veio pôr a nu, se dúvidas houvesse). De que outra maneira se pode explicar o facto de que o dinheiro — originariamente um elemento mediador que possibilita as trocas (trocas essas, como vimos, necessárias a um certo estrato da subsistência) — tenha deixado de ser concebido como um meio ao serviço de necessidades vitais para se instituir como um fim em si mesmo, encarnando, mais uma vez, a força soberana do heterogéneo...?

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