(aula)
O limite do humano (II)
2 de Novembro
2020
O visionamento de um excerto de Shoah (1985), de Claude Lanzmann, conduziu a continuação da conversa sobre o limite do humano que foi, nesta aula, vertida para a questão da representação, da mimese e do mito. Ecoaram as questões:
O que é a verdade e como se pode mostrá-la?Qual a relação entre memória, documentário e ficção?
frame de Shoah
No excerto seleccionado, um sobrevivente do campo de concentração de Treblinka, Abraham Bomba, descreve as acções a que foi forçado em virtude da sua profissão de barbeiro: cortar o cabelo das mulheres que estavam prestes a ser assassinadas na câmara de gás de modo a levá-las a acreditar que, após o corte de cabelo, iriam apenas tomar um banho e seguir para outro lugar. Abraham Bomba afirma que lá, na câmara de gás, «era muito difícil sentir alguma coisa ou ter um sentimento», e o modo como Lanzmann o conduz à emoção através da rememoração, não só pela palavra, mas também através de uma encenação do próprio acto de cortar o cabelo, levou-nos a um comentário sobre a activação da memória através da representação.
Nesse sentido, comparou-se e distinguiu-se a actuação dos barbeiros de Treblinka, obrigados, sob pena de morte, a agir como se não soubessem a verdade sobre o destino das mulheres a quem cortavam o cabelo, e a actuação viabilizada pelo filme de Lanzmann, através da qual se liberta uma emoção até então suprimida. Ao recusar a ingenuidade do documentário «puro», o recurso de Lanzmann a uma encenação mostra-nos que os grandes documentários assumem a sua dimensão ficcional.
Esta asserção de que ao gesto documental subjaz um gesto ficcional levou-nos a uma consideração sobre a representação artística em geral: a de que a arte é liminarmente uma encenação. O artista põe em cena porque não pôde estar presente à origem, testemunhando, não pela origem propriamente dita, mas pela necessidade inextricável de ficcionar, isto é, de fazer mitos. Por outro lado, o pensamento mais perigoso, que se distingue do pensamento artístico, é aquele que acredita que há uma pureza original a recuperar. O perigo advém na passagem de uma ficção pessoal e transitória (potencialmente libertadora) a uma ficção colectiva e fundadora (mortífera, pois institui-se suprimindo outrem), como foi o caso do mito nazi. Com base nesta diferenciação entre mito pessoal e mito colectivo, teceu-se um último comentário sobre a relação entre a busca da origem – a produção de mitos – e a identidade. A arte ensina-nos que a libertação advém, não da conquista de uma identidade total, mas da possibilidade de uma sucessão de identificações transitórias (a própria palavra identificação implica um movimento...).
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