(aula)
O limite do humano (III)
9 de Novembro
2020
Nesta aula visionámos o filme Noite e Nevoeiro (Nuit et Brouillard, 1955, 32’), de Alain Resnais, prosseguindo a reflexão sobre o limite do humano, agora vertido para um questionamento da noção de identidade.
Surgido uma década depois do final da Segunda Guerra Mundial, Noite e Nevoeiro foi o primeiro filme sobre o Holocausto e articula filmagens das ruínas e vestígios dos campos de concentração, imagens de arquivo, as palavras de Jean Cayrol, na voz do mesmo, e a música de Hanns Eisler. Alain Resnais e Jean Cayrol afirmam ter concebido o filme como um «dispositivo de alerta» que se propõe a «levar ao conhecimento do público a verdade sobre os campos de concentração nazis».
Frame de uma passagem de Noite e Nevoeiro em que é dito:
«Hoje, nesta mesma via, é dia e faz sol. Percorremo-la lentamente. À procura de quê? De vestígios dos cadáveres vomitados pela abertura das portas? Ou dos passos dos primeiros a desembarcar, empurrados a coronhadas até à entrada do campo, entre latidos de cães, feixes de holofotes, tendo ao longe a chama do crematório, numa daquelas encenações nocturnas tão ao gosto dos nazis?»
Na conversa que se seguiu à visualização do filme afirmou-se a necessidade, isto é, a responsabilidade de não deixar de pensar o Holocausto, de não deixar de responder a um tal acontecimento desmontando a lógica que o tornou possível – uma lógica que poderá sempre voltar a instalar-se se não houver esse esforço contínuo de a pôr em causa e de a interromper. É a essa responsabilidade que aludem as últimas interrogações que Jean Cayrol nos lança, perto do final de Noite e Nevoeiro:
«Quem de nós vela, desse estranho observatório, para nos advertir da vinda dos novos carrascos? Têm eles verdadeiramente um rosto diferente do nosso?»
Neste sentido, referiu-se que não basta rastrear a dimensão histórico-religiosa da relação complexa entre o judaísmo e o cristianismo, é necessário indagar a especificidade da Alemanha nazi, isto é, o que ocorreu de diferente e de novo durante esses anos. Tal poderá ser compreendido através de uma análise da relação entre a execução de um programa identitário e a ambição de expurgar o povo judeu.
Foram evocados três dados:
1) Uma intervenção do historiador Raul Hilberg no filme Shoah, em que este condensa a sua tese sobre o desenvolvimento histórico do mal-estar ocidental face aos judeus em três momentos principais, traduzidos na progressiva contracção de uma frase:
(1) as práticas de evangelização e as tentativas de conversão, por parte de missionários cristãos, nos séculos III e IV: «vocês não podem viver entre nós como judeus»;(2) a expulsão dos judeus e a instituição de guetos, a partir da Idade Média: «vocês não podem viver entre nós»;(3) a concentração e o extermínio dos judeus nos campos da morte: «vocês não podem viver».
2) O texto “Israelismo” de Eça de Queirós (Cartas de Inglaterra e Crónicas de Londres, p. 59-67) que, escrito no final do século XIX, descreve de um modo premonitório o ódio aos judeus, referindo, com efeito, o caso particular da Alemanha. Embora esse ódio, no discurso público, estivesse sustentado no argumento de que seria necessário vingar a morte de Cristo, Eça de Queirós denuncia uma outra a função, a de um oportunista desvio, uma expiação de um mal-estar colectivo. Destacamos a seguinte passagem:
«Isto nunca falhava. Sempre que a Igreja, que a feudalidade se sentia ameaçada por uma plebe desesperada da canga dolorosa – desviava o golpe de si e dirigia-o contra o judeu.Quando a besta popular mostrava sede de sangue – servia-se à canalha sangue israelita.»
3) Um excerto da obra La fiction du politique (1987, p. 60-61), de Philippe Lacoue-Labarthe, esclarece-nos sobre a escolha do povo judeu para um tal acto expiatório (distinguindo, assim, o genocídio judeu de uma situação de guerra):
«No caso de Auschwitz, nada disso – malgrado a aparência (ideologia possante, estado de guerra, terror policial, organização totalitária do político, capacidade técnica considerável, etc.). Por duas razões: os judeus enquanto tais não eram, em 1933, um factor de cisão social (a não ser, é claro, de um modo fantasmagórico), eles não representavam nenhuma força política ou religiosa homogénea, não ofereciam sequer o aspecto de uma coesão social determinada. No máximo, poderíamos dizer, simplificando bastante o problema da assimilação, que formavam uma minoria religiosa ou histórico-cultural. Mas eles não ameaçavam a Alemanha como os Mélios ameaçavam a Confederação ateniense, os heréticos a cristandade, os protestantes o Estado de direito divino, os Girondinos a Revolução ou os Cúlaques o estabelecimento do socialismo. Eles só eram uma ameaça, enquanto decretados judeus, isto é, enquanto elemento heterogéneo, para uma nação cuja própria identidade ou cuja existência estava suspensa [en souffrance] e com efeito afrontada, por outro lado, por ameaças interiores e exteriores muito reais. Mas sabe-se suficientemente, penso, que a «ameaça judaica» releva da projecção.A segunda razão é esta: os meios do Extermínio não foram, em última instância, nem militares nem policiais, mas industriais [...]. Evidentemente, o exército e a polícia eram indispensáveis: para as buscas, os transportes, a administração dos campos e mesmo uma parte dos assassínios. Mas, no seu aspecto «final», o aniquilamento não retinha mais nenhum dos traços da figura clássica ou moderna da opressão sistemática. Já nenhuma das «máquinas» inventadas para extorquir as confissões, obter arrependimentos ou organizar o espetáculo edificante do terror era útil. Os judeus eram tratados como se «trata» os dejectos industriais ou a proliferação de parasitas (daí, sem dúvida, a sinistra piada do «revisionismo» sobre o Zyklon B: mas dizer que o Zyklon B servia para o despiolhamento é a melhor «prova» das câmaras de gás: meios químicos e cremação).»
A expressão en souffrance, a que Lacoue-Labarthe recorre para aludir ao estado precário da identidade alemã, uma nação acabada de criar, é uma expressão francesa que significa em geral aquilo que está em suspenso, à espera da sua conclusão (como acontece, por exemplo, com a expressão «lettre en souffrance» designando a carta que não foi levantada pelo destinatário). Lacoue-Labarthe mostra assim a ligação entre o sofrimento da nação alemã em busca da sua própria identidade e o povo judeu, um povo à espera, em suspensão. Enquanto povo da errância, do exílio, o povo judeu despertava nos alemães a consciência (recalcada e, portanto, projectada) de um intenso mal-estar. É por isso que o fascismo alemão, esforçando-se por erigir uma identidade nacional própria (uma identidade total), isto é, instituindo-se como um mito colectivo enraizado no «sangue e na terra», não poderia sustentar a inclusão do povo judeu na sua ficção nacional, visto que este se afigurava à Alemanha nazi como a sua própria negação. Projectando a sua impropriedade originária no povo judeu, a Alemanha nazi tenta eliminá-la exterminando esse povo. O genocídio judeu assumiu, portanto, os contornos de um acto ritual: um sacrifício que expia um problema de identidade com que os alemães se debatiam, que purga um mal-estar próprio ao descarregá-lo em outrem.
Em aulas subsequentes, será necessário aprofundar uma reflexão sobre como o problema de identidade não é exclusivo aos alemães, encontrando-se inscrito na génese do pensamento ocidental, o pensamento que veio desembocar no sujeito da metafísica e ao qual não é de todo estranha a lógica capitalista: a lógica do ganho, do valor, do sacrifício (a mesma lógica, enfim, que julgamos necessário interrogar e desmontar…). O segundo parágrafo do excerto seleccionado de La fiction du politique sugere esse desenvolvimento quando sublinha o carácter industrial do genocídio.
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