(aula)
O limite do humano (I)
26 de Outubro
2020
A Casa é Negra (1962) de Forough Farrokhzad lançou – a partir do mutismo que gerou – uma conversa que continuámos, sobre o limite do humano. Procurámos entrever um sentido positivo da palavra limite derivado da filosofia antiga grega: peras (πέρας). Assim pensado não como limitação ou insuficiência, mas como a possibilidade de uma forma, o limite do humano fala-nos da possibilidade do ser: do dom da vida. Em torno da leitura de uma passagem de Etty Hillesum (Diário 1941-1943, Assírio & Alvim, 2020, p. 187-188) sobre o «sentimento da vida», conversámos sobre o que significa sentir esse dom e transmiti-lo através do gesto artístico.
«Sábado de manhã [30 de Maio de 1942], às sete e meia.Os troncos nus que trepam ao longo da minha janela estão agora cobertos por verdes folhinhas tenras: uma pele encaracolada estende-se-lhes pelo corpo nu e rijo de ascetas.Pois, como foi aquilo no meu pequeno quarto? Tinha ido cedo para a cama e, da minha cama, olhava lá para fora pela grande janela aberta. E foi novamente como se a Vida, com todos os seus segredos, estivesse próxima de mim, como se eu a pudesse tocar. Tive a sensação de estar a repousar no seio desnudado da vida e de lhe ouvir o suave bater regular do coração. Jazia nos braços nus da Vida e ali me sentia imensamente segura e protegida. E pensei: «Como isto é estranho. Há a guerra. Há campos de concentração. Pequenas crueldades amontoam-se em cima de pequenas crueldades. Quando caminho pelas ruas, sei que, em muitas das casas por onde passo, há ali um filho que está preso, e ali o pai está refém, e ali têm de suportar a condenação à morte de um filho de dezoito anos.» E estas ruas e casas ficam perto da minha própria casa. Sei da tensão das pessoas, sei do grande sofrimento humano que se vai acumulando, sei das perseguições e da opressão e da arbitrariedade e do ódio impotente e imenso sadismo. Sei de tudo isso e continuo a enfrentar cada pedaço de realidade que se me impõe. E no entanto – num momento inesperado, abandonada a mim própria – encontro-me de repente encostada ao peito nu da Vida e os braços dela são muito macios e envolvem-me de modo muito protector, e nem sequer consigo descrever o bater do coração: tão lento e regular e tão suave, quase abafado, mas tão fiel, como se nunca mais findasse, e também tão bondoso e compassivo.Este é pois o meu sentimento da vida, e creio que não há nenhuma guerra ou crueldade humana gratuita que o possam modificar.»
Esta passagem abriu ainda um questionamento sobre a diferenciação entre a aceitação da vida e uma postura de resignação ou submissão e sobre a necessidade da rebeldia e da coragem para uma vida digna.
Foi ainda evocado o Texto para a restante vida de A. Borges (heterónimo de Maria Gabriela Llansol), que Paulo Sarmento sintetizou assim:
(...) texto que esconde uma cena abismal, a saber:que«O homem será»queaquilo a que se chamou humano até hoje mais não é do que fruto das imagens de quem detém o poderqueo arquétipo do humano está na figura do Pobrequea mutação do pré-humano que é para o humano será feita por sua conta e risco, não pela vingança sobre o mestre, nem pela redenção por conta de outrem.
Subjacente a esta visão está aquela de Espinosa quando se refere a o que pode um corpo – sendo que esse corpo é o corpo singular, nunca social…
→ aceder ao PDF de Texto para a restante vida
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