(aula)
Transforma-se o leitor na cousa amada (II)
28 de Fevereiro
2024
Querendo escrever um dia
o mal que tanto estimei,
cuidando no que poria,
vi Amor que me dizia:
«Escreve, que eu notarei.»
E como para se ler
não era história pequena
a que de mim quis fazer,
das asas tirou a pena
com que me fez escrever.
E logo como a tirou,
me disse: «Aviva os espritos,
que pois em teu favor sou,
esta pena que te dou
fará voar teus escritos.»
E, dando-me a padecer
tudo o que quis que pusesse,
pude, enfim, dele dizer
que me deu com que escrevesse
o que me deu a escrever.
Eu, qu' este engano entendi,
disse-lhe: «Que escreverei?»
Respondeu, dizendo assi:
«Altos efeitos de ti
e daquela a quem te dei.
E já que te manifesto
todas minhas estranhezas,
escreve, pois que te prezas,
milagres dum claro gesto
e, de quem o viu, tristezas.»
Ah! Senhora, em quem se apura
a fé de meu pensamento!
Escutai e estai a tento,
que com vossa fermosura
iguala Amar meu tormento.
E posto que tão remota
estejais de me escutar,
por me não remediar,
ouvi, que pois Amor nota,
milagres se hão-de notar.
- Luiz Vaz de Camões
in Maria Vitalina Leal de Matos [ed.] Obras completas de Luiz Vaz de Camões. II Volume: Lírica, E-Primatur, Lisboa, 2019)
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