24 março, 2023

(aula)

(aula)

O encontro com a natureza

de Março

2023



Leah Saraiva, s/ título, fotografia digital, março 2023.

    No âmbito da investigação de mestrado, Leah Saraiva partilha o seu trabalho até à data. O projeto com o título provisório O dom da sensibilidade – sobre o encontro com a natureza, procura explorar a ideia de encontro entre mesmo e outro, interior (que nos habita) e exterior (que habitamos), mediado pela experiência sensível que temos com o mundo que nos rodeia, em especial com a Natureza.
    Conhecemos a natureza como o lugar das árvores, do musgo, das pedras e dos pássaros chilreando, mas há uma dimensão que nos é vedada. Há um lugar íntimo que só pode ser acedido pelo interior. Neste espaço profundo do âmago dos átomos[1], a essência do ser existe condensada. Quando nos encontramos diante de uma árvore, uma pedra ou uma semente, e vemo-la verdadeiramente pelo que é, e a nós, pelo que somos (e não somos), só aí poderemos ver-nos como um. Convergem duas entidades e forma-se uma. É o lugar de encontro. Se uma árvore era um ser do mundo exterior, agora é ser em mim, que me habita. Entendemos que a nossa origem é partilhada e algo em comum temos enlaçado na matéria do nosso próprio ser. Exterior passa a ser interior e o outro passa a ser o mesmo.
    Uma leitura de O paradoxo e a mimese de Philippe Lacoue-Labarthe permite-nos pensar a natureza do encontro. Receber o outro implica um esvaziamento total do eu. Na mimese criadora, há que preparar o nosso lugar interior para criar o espaço necessário para receber o mundo na sua imensidão. Pensar o paradoxo permite-nos ganhar consciência da insistente fugacidade do encontro. Duas entidades diferentes podem encontrar-se num lugar de comunhão, onde, por um instante, coabitam na mesma verdade. Este instante, no momento em que nos é dado, é nos retirado – existiu.
    A Metáfora do Coração de María Zambrano explica-nos de que forma o outro pode ser uma metáfora de nós mesmos, e como esta experiência de identificação se alberga no coração. A natureza que se gosta de esconder[2], é colocada diante de nós pelo mecanismo da metáfora. Este mundo, mesmo por trás de um véu, está presente. O coração, o lugar íntimo e também ele escondido, medeia esta experiência. “É como um espaço que dentro da pessoa se abre para acolher certas realidades. Lugar onde se albergam os sentimentos indecifráveis”[3]. O coração é o espaço do encontro, o lugar onde converge a minha intimidade com a do outro.
    Habitando o mundo com um olhar atento, cuidadoso, permeável, um coração predisposto, podemos aceder ao mundo de forma íntima, permitindo que ele nos molde de fora para dentro. Quando as intimidades se cruzam, quando um habita o outro, dá-se o encontro que permite um vislumbre para além do véu que resguarda a natureza. Vemos nessa fenda um feixe de verdade, que nos permite ir construindo um entendimento casa vez mais apurado do mundo e de nós. É à pintura que entrego esse segredo que, mesmo penetrado, é incomunicável, mesmo que revelado, continua na ordem do íntimo. A pintura dá o dom de fixar e dar corpo a esse instante sempre fugaz.


[1] Alberto Carneiro - Notas para um manifesto de uma arte ecológica em arte vida/vida arte, p. 103.
[2] Parafraseando um conhecido aforismo de Heraclito.
[3] María Zambrano – A Metáfora do Coração – e outros escritos, p. 22.

Referências:
LACOUE-LABARTHE, Philippe – O paradoxo e a mimese. Tradução de Tomás Maia. Projecto teatral, 2011.
ZAMBRANO, María – A Metáfora do Coração – e outros escritos. Tradução de José Bento. Assírio & Alvim, 1993.
CARNEIRO, Alberto – Notas para um Manifesto de uma Arte Ecológica [1973] em Arte vida / vida arte [catálogo]. Fundação Serralves, 2013.

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