(aula)
Mal de identidade (II)
30 de Novembro
2020
No seguimento da aula anterior, foram apresentados três motes para debatermos em conjunto ao longo das próximas semanas:
MitoO mito é inevitável para o ser humano, se ele se pode definir como «meio de identificação» (definição proposta n’O Mito Nazi). Tal não significa que o mito esteja inscrito na natureza humana; ao invés: é precisamente porque o humano não possui uma natureza dada — ou uma identidade originária — que ele é um animal mítico. Talvez se possa reler, a esta luz, o verso de Pessoa: «O mito é o nada que é tudo» (poema «Ulisses», in Mensagem).Mal
O mal é evitável para o ser humano: tudo depende do modo de fazer-mito. Se esse modo visa a apropriação total do exemplo (do modelo, do tipo, etc.), então estamos perante o logro de uma identificação substancial que conduz, logicamente, à vontade de fusão: ao desaparecimento de si ou do outro. Em suma, à instituição mortífera do Idêntico (do Uno) — que é afinal a justificação do mal.ArteA arte — sem ser ingenuamente pedagógica ou voluntariosamente política —, a arte, pelo seu próprio gesto, ensina-nos que o mito é inevitável e que o mal é evitável. No primeiro caso, porque a obra ficciona a partir de um vazio identitário; no segundo, porque essa ficção jamais opera pela eliminação de si ou do outro. As obras são personas que nos libertam, não do vazio, mas do horror sem matar ninguém.
Nesta aula, debruçámo-nos sobretudo sobre o primeiro mote, o de pensar a inevitabilidade do mito. Dada a proximidade entre as noções de mito e de arte, e para não perder de vista um ensinamento da arte sobre o mito, que pretendemos relacionar com a possibilidade de evitar o mal, foi proposto que se começasse por distingui-las.
Tínhamos visto, na aula anterior (a partir de uma leitura d’O Mito Nazi), que o mito se pode definir como um meio de identificação. Nesta aula, essa definição foi enriquecida pela breve evocação de um outro texto de Philippe Lacoue-Labarthe, O horror ocidental, do qual destacamos a seguinte passagem:
«Mito quer dizer […] uma palavra [parole] (nem simplesmente discurso, nem simplesmente narrativa) que se propõe a si própria, mediante o procedimento de algum testemunho, como portadora da verdade. Uma verdade inverificável, anterior a qualquer manifestação ou a qualquer protocolo lógico. Difícil de mais para se enunciar directamente. Grave de mais ou penosa de mais. Sobretudo obscura de mais».
→ aceder ao texto completo, traduzido por João Camillo Pena
Atentando na origem grega de mito, muthos, que significa “sequência de palavras”, “discurso”, “narração”, propusemos uma terceira definição que procura articular as duas precedentes: palavra que testemunha sobre a origem. Ora, é porque um tal testemunho exige uma regressão infinita, impossível, para lá de todo o passado conhecido, uma anterioridade absoluta a que ninguém pôde estar presente, que qualquer representação da origem será sempre, necessariamente, uma ficção, uma representação do irrepresentável, daquilo que é inapreensível e portanto inapropriável. Ainda assim, a espécie humana, assombrada pela origem, pelo mistério da existência, não pode deixar de tentar testemunhá-la, de tentar descobrir e formular a sua verdade inverificável.
(A respeito da irredutibilidade de um tal desconhecido, que fomentou um breve comentário sobre a relação entre o mito e a ciência, foram lembradas as palavras de Fernando Pessoa, «Compreendemos só parte das coisas; a outra parte ignoraremos sempre», in → Da impossibilidade de uma ciência do lexicon.)
Assim, talvez possamos arriscar algo que estivemos à beira de dizer no final da aula: uma pergunta: o que são os deuses, afinal, senão seres que inventámos para testemunhar sobre a origem?
Seja como for, parece-nos que esta pergunta já estava prometida no ensaio O horror ocidental:
«Todo o empreendimento de Conrad consiste em encontrar um testemunho para o que ele quer testemunhar. Os antigos invocavam os deuses. Ele inventa Marlow.»
Vislumbramos assim um início de resposta à pergunta sobre a distinção entre o mito e a arte: o mito é a estrutura geral da linguagem, e a arte é um seu modo particular de expressão (tal como a religião é um outro modo particular).
Talvez então possamos pensar em aulas futuras que há, essencialmente, dois modos de fazer-mito: o artístico (que apresenta uma verdade inverificável — a obra), e o religioso ou, pelo menos, o religioso que assenta no dogmatismo (apresentando-se como discurso de verdade — e de uma verdade inquestionável: o dogma, a presentificação da verdade, e o ídolo que pretende dar-lhe corpo).
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