(aula)
Mal de identidade (I)
23 de Novembro
2020
Na última aula, a evocação da inspiração e da expiração conduziram a uma continuação do pensar acerca do limite do humano — no inspirar do primeiro sopro que nos lança ao ritmo da vida encontramos o primeiro limite, num expirar, o último. Em suma, não começamos em nós, começamos em quem nos precede e a descoincidência de si é a condição de vida.
Édouard Manet, As Bolas de sabão (Les Bulles de savon, 1867),
Museu Calourste Gulbenkian, Lisboa.
Nesta aula retomámos o percurso feito em torno do mote “o limite do humano” com uma reflexão sobre o que foi formulado como um mal de identidade: a ambição de se querer coincidir absolutamente consigo mesmo, sufocando, para tal, a respiração da vida e do gesto criativo.
Para tal, isto é, para situar a necessidade de recentrar o pensamento sobre o mal na noção de identidade, partimos de quatro considerações (que tentámos resumir rapidamente, talvez demasiado rapidamente, obrigando-nos a voltar a estas mais tarde):
— depois da ruptura com a ideia segundo a qual o mal se explica dentro do quadro de uma justiça divina e/ou de uma ordem pré-estabelecida do mundo, ruptura introduzida por Kant (em A Religião nos Limites da Simples Razão) impossibilitando a ideia de uma teodiceia, o mal não pode mais ser pensável como necessário, inscrevendo-se antes na história como uma contingência;— nesta medida, o mal é pensável como radical quando se põe em causa o fundamento das máximas morais de um ser humano actuando em liberdade;— depois do “mal radical” kantiano, o pensamento dispõe também do conceito de “banalidade” (do mal) introduzido por Hannah Arendt aquando do seu livro Eichmann em Jerusalém (conceito proposto expressamente em oposição ao — ou em abandono do — conceito de radicalidade do mal);— além da radicalidade e da banalidade há um terceiro conceito, o conceito de identidade, o qual, articulando-se com a realidade do mal, apresenta uma dupla virtude: primeiramente, é ele que poderá esclarecer-nos sobre a manutenção da radicalidade do mal, em vez de nos obrigar a opor o “mal radical” ao “mal banal” (tendo ficado para mais tarde, se houver interesse e ocasião, a discussão sobre a pertinência deste último ser aplicado ao “caso” Eichmann, ou, pelo menos, sobre a possibilidade de ser extrapolado para além dele); em segundo lugar, é esse mesmo conceito — o de identidade — que poderá pôr a nu a origem do mal e, por conseguinte, a possibilidade do bem, sendo essa ambivalência entre o mal e o bem aquela que é justamente sentida por todos aqueles que criam e, por vezes, se autodestroem.
A partir destes considerandos preliminares, propôs-se aprofundar o conceito de identidade ou, mais rigorosamente, aprofundar a noção proposta de “mal de identidade”, através da leitura de alguns excertos, recentemente traduzidos por Sara Belo, do livro O Mito Nazi (1990/1995, pp. 32-50).
Embora Lacoue-Labarthe e Nancy não se refiram explicitamente à noção de mal neste livro, propôs-se que, por esclarecerem sobre a noção de identidade e sobre os mecanismos de identificação que subjazem à construção de uma identidade colectiva, permitem-nos pensar a tensão entre a radicalidade e a banalidade do mal (e entre a responsabilidade singular e os automatismos dos fenómenos de massas) de um modo que não implica uma oposição nem a exclusão de um dos termos.
Neste livro, Lacoue-Labarthe e Nancy rejeitam a caracterização do nazismo enquanto fenómeno irracional, precisando, em vez disso, que a Alemanha nazi recorreu à instrumentalização de mecanismos miméticos que solicitam o inconsciente ao propor um modelo (o tipo ariano) como figura para a fixação de uma identidade colectiva. Daí o argumento exposto, neste livro, segundo o qual o nazismo se constrói numa dimensão mítica, como um mito, no sentido em que os mitos têm uma função exemplar, isto é, fornecem-nos figuras e gestos com o quais nos podemos identificar. Porém, ao contrário dos mitos herdados da Antiguidade, formados e reformulados anonimamente pela sucessão das gerações, o nazismo propõe-se como uma construção consciente e autónoma, isto é, não se trata de celebrar uma identidade herdada de outrem, mas de se auto-criar de acordo com uma vontade própria, com total independência. Se uma tal ambição só pode resultar num logro, a sua malignidade cresce na medida em que é pensada a um nível colectivo, facto que pressupõe, à partida, a definição e a prescrição de uma identidade que deverá excluir todos aqueles que não forem assimiláveis ou não se deixarem assimilar pela identidade emergente, pretensamente “nacional”. Nesse sentido, Lacoue-Labarthe e Nancy descrevem a evolução do nacionalismo alemão, que desembocou no nazismo, como «a longa história da apropriação dos meios de identificação» (p. 39) e relacionam essa demanda com a função «ortopédica» que a identificação mítica assume na filosofia de Platão: separar os mitos maus, que devem ser expurgados, dos mitos bons, os quais serviriam para a imposição de tipos, de modelos, em função dos quais o indivíduo se pode fixar. Assim, embora Lacoue-Labarthe e Nancy se dediquem a pensar a especificidade do fascismo alemão, nomeadamente a sua natureza racista, procuram, ao mesmo tempo, enquadrar essa especificidade no contexto do pensamento ocidental, sobretudo no que diz respeito à lógica que subjaz ao Sujeito da metafísica, a qual atravessou toda a tradição filosófica ocidental e que define o ser enquanto coincidência absoluta consigo mesmo, pressupondo a construção da identidade como uma fixação e uma totalização.
Dos comentários que se seguiram à leitura do excerto seleccionado, destacou-se a ideia de que o mal será evitável na medida em que for pensável, isto é, na medida em que forem discerníveis alguns elementos essenciais da sua lógica. Ao analisar a lógica que subjaz à ideologia identitária do nazismo, viu-se como são mobilizados movimentos de identificação com consequências mortíferas. Mas, fosse outro o entendimento da noção de identidade, diferentes movimentos de identificação seriam mobilizados. Tudo depende se o movimento de identificação é ou não reconhecido na sua inevitável provisoriedade (lembremos o movimento da respiração…) e também se a identidade é pensada individual ou colectivamente. Assim, propôs-se que o mal não reside no facto de haver identificação (uma vez que isso é inevitável), mas que advém do logro de se pensar que é possível apropriar o movimento de identificação, ou seja, fixá-lo numa apropriação definitiva (como se esta não fosse originariamente constituída por uma desapropriação incessante).
Em aulas futuras, será necessário reflectir em que medida a arte nos pode ensinar uma abordagem ao mito (à inevitabilidade do movimento de identificação) que não seja mortífera, isto é, em que medida nos ajuda a evitar o mal, dado que a arte mobiliza, ao mesmo tempo, a apropriação e a desapropriação, a identificação e a desidentificação. Nesse sentido, e porque procuramos articular o pensamento sobre o gesto artístico com o pensamento sobre o colectivo, valerá a pena atentar na precisão que Lacoue-Labarthe e Nancy propõem a propósito da requisição, pelo regime nazi, de meios artísticos (p. 49):
«o nacional-socialismo não representou simplesmente, como dizia Benjamin, uma «estetização da política» (à qual teria sido suficiente responder, ao jeito de Brecht, com uma «politização da arte»: pois também disso um totalitarismo é perfeitamente capaz de se encarregar), mas uma fusão da política e da arte, a produção do político como obra de arte.»
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Numa nota referente às aulas anteriores (em que, num comentário ao filme Shoah, de Claude Lanzmann, se abordou o papel da ficção na criação de um filme documental, assim como a tensão entre as narrativas religiosas do cristianismo e do judaísmo sobre a representabilidade, a imagem e a palavra), mencionou-se um texto de Bruno Duarte, mais especificamente um excerto de "Elegia política e tempo trágico" (in Intervalo, nº 2, Lisboa, Vendaval/Diatribe, Maio de 2006, pp. 90-112).
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