17 junho, 2021

(aula) O instante da nossa morte

(aula)

O instante da nossa morte

2 de Junho

2021

Fotografia de Eiichi Matsumoto (Agosto de 1945)

Folheámos duas vezes o mesmo livro editado pelo Museu da Bomba Atómica de Nagasaki. Num primeiro momento, em silêncio, acompanhámos o movimento filmado das páginas que se sucediam. O horror era inominável. Num segundo momento, escutámos as legendas lidas das fotografias — mas a realidade nomeada nessas legendas, embora impregnasse as imagens, não conseguia apagar o inominável que continuámos a ver e a rever. Como se a realidade tornasse ainda mais irreal o poder real da destruição humana. Entrevimos assim, pela linguagem, uma espécie de bordo interno ou do limite da fotografia: a capacidade de esta indicar — ou indiciar — o que não chega a ter nome.

The Haystack, William Henry Fox Talbot (1844)

Na segunda parte da aula, revisitámos um ensaio de Jean-Christophe Bailly, O instante e a sua sombra, estruturado na constelação entre duas imagens: Meda de Feno, de William Henry Fox Talbot (prancha X do primeiro livro da história da fotografia, Pencil of Nature), e a fotografia de Eiichi Matsumoto que documenta a projecção do corpo de uma sentinela, do seu cinto e da sua escada sobre uma parede de madeira, instantes após a explosão em Nagasaki. Foi sobre esta última imagem que nos detivemos argumentando que ela nos situa afinal — terrivelmente — para além da fotografia e da arte. Na verdade, se uma das categorias para pensar a imagem artística é a heterosubstancialidade (o facto de a coisa artística ser de uma substância distinta da ausência a partir da qual ela se forma ou se levanta — assim como o parece indicar, desde logo, a famosa lenda da origem da pintura, reportada por Plínio, o Velho), então a fotografia de Matsumoto não documenta uma obra de arte. E não a documenta pela simples razão de que as projecções sobre a parede de madeira não são sombras — assim como o atestam os restos enegrecidos da matéria orgânica pulverizada. O que nos move porém, com esta afirmação, não é uma vã taxinomia da arte ou uma fixação dos seus limites empíricos; é, antes, uma ética — ou arquiética — da arte que pratica incondicionalmente o mandamento Não matarás! Se a arte se faz, sem dúvida, com a morte imemorial, não há todavia uma arte da morte. — Talvez este enunciado nos elucide sobre o limite do poder humano sobre a morte, quer dizer, simplesmente, sobre o limite do poder humano.

Entrevimos assim, desta vez, o bordo externo da fotografia (da arte): o que está para além do seu limite. Nós somos — quer o queiramos quer não — doravante a sentinela desse limite. Onde deixámos de soprar uma das primeiras imagens (as mãos negativas das cavernas pré-históricas) para sermos nós próprios soprados pelo nosso poder de autodestruição. A espécie nasceu com o sopro — e pode morrer com ele.

Cueva de las Manos, Argentina

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